quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A burocracia vista com outra visão





"Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização  
de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para  
quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos  
ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e  
que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que  
estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é  
recompensada, e a honestidade se converte em autossacrifício; então  
poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada."  
Ayn Rand - Filósofa Americana

"Faz parte do plano de Deus conceder-nos, em resposta à oração de fé,  
aquilo que Ele não outorgaria se não pedíssemos assim."
Ellen White - Escritora Americana

Cidade Constitucional 2012


A Cidade Constitucional e a Capital da República 2012 - Relatório


Entre as diversas atividades desenvolvidas ao longo da viagem, quando se pode conhecer um pouco mais da estrutura e atividades da administração pública em nível federal, uma me chamou mais a atenção, sendo as ações da Controladoria Geral da União (CGU), órgão de controle interno do poder executivo federal, que tem como atribuições básicas a correição, prevenção e combate à corrupção, também a partir do controle social por parte da sociedade brasileira. Na apresentação do tema ficou nítido que um dos graves problemas da administração pública brasileira é o desvio de recursos públicos e mais, o desperdício desses recursos dentro da administração.
Traçando um paralelo com outro tema relevante dentro do estudo da administração entendi como oportuno comentar e abordar sobre accountability, a partir da ideia de que para se alcançar a transparência na administração pública é necessário incorporar ideias e transformá-las em ações. Para tanto, foi realizada a revisão bibliográfica de alguns estudos sobre o assunto.
Ao explorar o conceito de accountability observa-se que seus aspectos vão além do que comumente este é empregado, bem como no Brasil, seu emprego é recente, até porque os aspectos de accountability passam a ser empregados por aqui, somente com o advento da Constituição Federal de 1988, e mesmo assim, ainda há inúmeras resistências ao seu efetivo emprego, dada as vicissitudes de nossa política e nossa administração pública.
Aliás,  a palavra accountability está intimamente ligada a conceitos de democracia e governança ultrapassando a ideia de responsabilização política. Percebe-se que sua abrangência é muito maior. A eficiência administrativa e da responsabilização política depende do comprometimento do gestor público com a democracia e com um projeto de desenvolvimento social (RODRIGUES, 2010).
Nos estudos de CAMPOS (1990) foi evidenciado que a possibilidade de se tornar a administração pública brasileira mais responsável está relacionada a algumas necessidades que, acabam por guardar certa dependência uma da outra e estão diretamente ligadas aos aspectos da democracia sendo: i) organização dos cidadãos para exercer o controle político do governo; ii) descentralização e transparência dos governos; iii) substituição dos valores tradicionais por valores sociais emergentes. Nota-se que as necessidades apontadas por Campos, nos remetem a própria Constituição do país. Nos seus capítulos, artigos, parágrafos e incisos, o ordenamento jurídico do país já faz alusão e põem à disposição não somente dos governantes, mas também dos cidadãos, inúmeros dispositivos para que se possa desenvolver uma administração mais responsável. Fato é que a Constituição brasileira nasce após um longo período em que o país esteve sob o domínio de um regime de exceção, quando a sociedade ansiava por mudanças, o que vem ao encontro das necessidades apontadas por Campos. Naquele momento abre-se a “janela de oportunidade” para as transformações, dada confluência do fluxo de problemas, necessidade de mudança do “status quo” de até então; com o fluxo político, clima nacional de necessidade de mudanças, pressão de grupos e instituições recém criadas como o PT - Partido dos Trabalhadores, CUT - Central Única dos Trabalhadores, MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, entre outros, além das próprias mudanças no seio do governo.
Retomando o conceito de accountability verificou-se que não há uma única palavra que possa traduzi-lo na língua portuguesa, evidenciando a elasticidade de aspectos que a palavra nos apresenta.
O estudo de Campos mostra que mesmo no idioma inglês, originário da palavra, nem todos os dicionários possuem a palavra elencada, havendo a necessidade de buscar palavras correlatas como accountable, traduzida em dicionários da língua inglês - português pelos adjetivos responsável, explicável e justificável.
Constatou-se também que a palavra accountability, traz a ideia, considerando de forma implícita, de responsabilidade pessoal pelos atos praticados, e explicitamente exige a prestação de contas tanto na administração pública como na privada.
Em artigo de PINHO; SACRAMENTO (2009) um ponto interessante nos remete ao tratado anteriormente. Verificou-se que a palavra em estudo é, no idioma inglês, parte de seus dicionários desde os anos 1797, enquanto no Brasil, segundo os autores, começa a ser introduzido efetivamente em nossa literatura a partir do século XXI. Ora, não há como deixar de fazer um paralelo com a própria conformação histórica dos países, uma vez que, como bem lembraram os autores, a palavra surge em meio a um período em que, o país de origem vive a onda capitalista. Para boa condução da administração pública se exigiu a responsabilidade por parte daquela. Enquanto que, no Brasil, somente com o advento da Constituição de 1988, surge instrumentos capazes de serem referenciados como prática de accountability, e mesmo assim, como já tratado, as disfunções políticas e da burocracia administrativa do país, são impedimentos para o emprego destas práticas.
Desta forma, pôde-se concluir que, no idioma português a palavra accountability possui mais que uma tradução ou aspecto, sendo as mais comuns, a responsabilidade; obrigação e responsabilização daqueles que ocupam cargo, geralmente de tomador de decisão, em prestar contas conforme a lei, e que caso não a faça, poderá ficar a mercê do ônus da justiça.
Para maior entendimento da palavra, bem como para mostrar a dimensão da interpretação desta, foi necessário buscar o conhecimento com alguns autores que exploraram mais amiúde o assunto. Isso evidenciará os vários aspectos da palavra como inicialmente comentado. Para SCHEDLER (1999) o significado de accountability foi pouco explorado, uma vez que mesmo com a adoção da palavra por instituições, políticos, ativistas de base, acadêmicos, jornalistas entre outros, mesmo na sociedade anglo-saxã seu significado ainda é evasivo e de fronteiras indefinidas. Há de se destacar que, um conceito susceptível a mais de uma interpretação deve acompanhar a própria evolução das sociedades, e sua realidade a cada tempo, de forma que tenha que se adequar ao status quo.
CAMPOS (1990) afirma que accountability é sinônimo de responsabilidade objetiva, por tratar-se da responsabilidade de uma pessoa ou organização para com a outra, que esteja em ambiente externo ao seu. Isto levaria a uma premiação e reconhecimento, em sendo empregada, ou ao contrário, levaria ao castigo, ou seja, quem tem responsabilidade para com alguma pessoa ou instituição deve se sujeitar à responsabilização pelo desempenho e resultados de suas ações.
Esta responsabilidade, aí se levanta outro aspecto da palavra, alerta também para ideia de que essa não pode estar pautada pela ameaça e sanção, mas sim por um sentimento interior de que, cada um faz parte da solução e não apenas do problema, associando a ideia de responsabilidade subjetiva, aquele sentimento da própria pessoa sobre si mesma, que fará com que ela acredite na necessidade de prestar constas a alguém.
Outro aspecto levantado, este por PRZEWORSKI (1998), aborda a ideia de que os governos são responsáveis, se os cidadãos tiverem acesso à informação que retrata atuação dos governantes em benefício do interesse público, e mais, se aqueles poderão aplicar sanções caso este aspecto não esteja sendo atendido. Assim, pela lógica, um político em desconformidade com esta regra, acabaria por não ser reeleito.
Na visão de SCHEDLER (1999) accountability  depende de três questões tidas como necessárias para sua eficácia: informação, justificação e punição. Informação e justificação dizem respeito à obrigação de as autoridades públicas informarem, explicarem e responderem pelos seus atos, o chamado answerability. Já a punição diz respeito à capacidade das agências imporem sanções e perda de poder àqueles que não estiverem comprometidos com o interesse público, o chamado enforcement. Nesta visão, a noção de accountability é bidimensional, pois, envolve a capacidade de resposta e de punição, bem como pode-se depreender que answerability e enforcement se complementam. Isto também infere a constatar que accountability, como já destacado, vai além da geração e divulgação de dados, dado que, accountability,  permite a possibilidade de punição àqueles que não estiverem pautados pelo interesse coletivo, por exemplo.
Voltando ao pensamento de Campos destaca-se o fato de que a autora relaciona accountability com democracia, uma vez que em sociedades mais avançadas, considerando o emprego da democracia, o interesse pela accountability costuma ser maior que nas demais. Outra consideração importante para esta análise, diz respeito às considerações de SCHEDLER (1999), quando trata da accountability como sinônimo de responsabilidade objetivo, resgatando o entendimento de Campos, pois isto reforça a ideia da necessidade de se estabelecer um diálogo entre os atores que possuem responsabilidades, com aqueles tidos como responsivos. Seguindo nesta linha, para Schedler, a accountability política pressupõe a existência do poder e a necessidade de que este seja controlado e não eliminado, sendo a própria razão de ser do accountability. Assim, identifica três formas de o poder ser controlado, ou de prevenção do abuso do poder: i) sujeitar o poder ao exercício das sanções; ii) obrigar que este poder seja exercido de forma transparente; iii) forçar que os atos dos governantes sejam justificados; sendo a primeira ligada ao conceito de enforcement e as outras duas à capacidade de resposta das autoridades públicas. Esta última, answerability, indicaria dois pontos de análise: um relativo à informação das decisões e outro relativo à necessidade dos governantes explicarem tais decisões, configurando uma dimensão informacional e outra argumentativa, ambas interiorizadas na concepção de accountability (CARNEIRO, 2004). Schedler ainda enxerga uma terceira dimensão, relativa aos elementos que obrigam ao cumprimento da lei, através de sanções diversas, podendo estas três dimensões estarem juntas ou não, para a existência de accountability. O autor relata que, a necessidade de accountability advem da opacidade do poder, de um contexto de informação imperfeita e tem como eixo básico o princípio da publicidade. Accountability somente tem sentido dentro do espaço público, preservando suas três dimensões: informação, justificação e punição.
Outros estudos relevantes sobre o conceito de accountability são os de O’DONNELL (1998,1991) que trata a dimensão bidimensional de accountability a classificando de acordo com o lugar ocupado pelos atores que participam deste processo, o dividindo em vertical e horizontal.
O accountability vertical é entendido como uma ação entre desiguais, individual e/ou coletiva, tanto sob a forma do mecanismo de voto (controle top-down), como sob a forma de controle burocrático (buttown-up), caso das eleições; das reivindicações por parte de movimentos sociais; as próprias reivindicações por parte da sociedade civil, independente de organização; do papel da imprensa etc. Já accountability horizontal é entendido como uma relação entre iguais, através do mecanismo de checks and balances, ou seja, os freios e contrapesos, a vigilância mútua entre os poderes do Estado, caso da atuação entre executivo, legislativo e judiciário; as agências e instâncias responsáveis pela fiscalização na prestação de contas. Desta forma, a dimensão vertical do conceito de accountability nos indica a existência de uma ação entre desiguais, cidadão x representante; enquanto que a dimensão horizontal indica uma relação entre iguais, o checks and balances entre os poderes constituídos de um Estado.
Ainda, para SCHEDLER (1999), a ideia de O’Donnell, ao abordar accountability vertical e horizontal, mas precisamente o accountability horizontal, considerando somente os atos e ações por parte dos agentes do Estado, independentes entre si, apresenta dificuldades de análise. Isso se dá em razão de não ser suficiente, a definição de accountability horizontal, quando se baseia na autonomia dos poderes constituídos. O autor entende que, há necessidade de ser levado em consideração o papel dos agentes da sociedade em ambas dimensões.
Na ideia de O’Donnell observa-se também que a accountability vertical e horizontal foi construído sobre as três correntes clássicas do pensamento político, quais sejam: a democracia, liberalismo e republicanismo.
O'Donnell (1998) em seu estudo também faz uma análise muito próxima da realidade brasileira, ao afirmar que, mesmo havendo mecanismos de  accountability na América Latina, estes possuem alta fragilidade, assim como já discutido anteriormente quando foi citado que governantes e governantes encontram a sua disposição dispositivos na Carta Magna deste país, para que sejam empregados, a fim de tornar a administração estatal mais próxima da ideia de accountability. Ao analisar o plano vertical, o autor lembra que embora se tenha as eleições como principal canal entre desiguais, o fato de ocorrerem de tempos em tempos, aliando-se à existência de sistemas partidários pouco estruturados, e até viciados e susceptíveis às vicissitudes das gramáticas da política, a volatilidade de eleitores e partidos, políticas públicas pouco definidas e súbitas reversões políticas, tudo isso, faz com que a eficácia da  accountability eleitoral torna-se bastante fragilizada.
Tanto O'Donnell (1998) como Campos (1990) partilham de mesma opinião quando questionam a eficácia dos mecanismos de accountability, principalmente em relação à imprensa, uma vez que esta demonstra estar viciada, ou seja, ligada a interesses e conveniências particulares, o que, sem sombras de dúvidas, agindo assim, se afasta dos aspectos de accountability.
No plano horizontal o autor evidencia a necessidade de as agências do Estado estarem trabalhando em rede e não somente ligadas as suas respectivas e específicas áreas de atuação de forma isolada. Isso nos remete novamente as contribuições de Kingdon quando da análise da formação da agenda política, formulação e implementação de políticas públicas, já que as redes sociais geralmente criam um sentimento comum entre os diversos atores que participam deste ciclo. Outras evidencias apontadas são a possibilidade de violação da  accountability horizontal através da usurpação ilegal da autoridade de uma agência estatal por outra e a corrupção. Campos, sobre isso, cita o final da década de 1980 brasileira, com a path dependence se fazendo presente, já que muito do que esta autora abordou em seu trabalho, ainda persiste na cena brasileira. Desta forma, Campos trata e entende que havia, à época, uma falta de credibilidade do Poder Legislativo, que possuía representantes não demandados pela sociedade, a fim de executar as promessas de campanha, e com isso preocupavam-se com interesses particulares somente. Quanto ao Judiciário entendeu que este poder era dependente do Executivo, principalmente na alocação de recursos financeiros. Nesta linha de pensamento, juntamente com a pouca mobilização da sociedade civil, resultaria a má qualidade de informações entre governo e sociedade, que teria permitido a soberania do Executivo em nível federal sobre as demais esferas, bem como do Executivo sobre os demais poderes.
Muito do que foi tratado até então nos infere a pensar que, a assimetria informacional entre governo e cidadão passa a ser uma condição sine qua non na relação entre governo e cidadão. Isso se daria pelo fato de, conforme Przeworki (1998), mesmo havendo instituições democráticas tidas como clássicas em funcionamento satisfatório, estas não poderiam garantir a accountability e tão pouco capacitar os cidadãos a obrigarem os governos a cumprir com o seu dever pois, os governos são detentores de informações privadas sobre seus objetivos e sobre as relações entre as políticas e resultados.
Destaca-se neste momento os apontamentos do Centro Latino Americano para o Desenvolvimento (Clad) para quem a realização do valor político da  accountability depende de dois fatores: o desenvolvimento da capacidade dos cidadãos de agir na definição das metas coletivas de sua sociedade, já que em sendo indiferentes à política inviabiliza-se este processo; e a construção de mecanismos institucionais que garantam o controle público das ações dos governantes ao longo de todo o seu mandato (2006); apontamentos estes que vão ao encontro do que Campos (1990) já havia pensado e ainda, para ela, a ausência de accountability no Brasil se dá pela pobreza política das pessoas que se comportam de forma passiva, a espera de uma ação por parte do Estado, ao invés delas próprias se organizarem e demandarem do Estado. Esta ideia, ainda arraigada no Brasil, merece certa cautela na análise e tomada como verdade exclusiva porque nos faz refletir sobre o processo histórico de formação do Estado brasileiro, discussão que não se faz necessária no momento, mas que deve ser levada em consideração. 
O Clad (2006) ainda identifica cinco formas de avaliação da administração pública, evidenciando o caráter multidimensional da  accountability, sendo: a) pelos controles clássicos; b) pelo controle parlamentar; c) pela introdução de lógica dos resultados; d) pela competição administrativa; e e) pelo controle social. Nota-se que o surgimento de formas ainda não exploradas, caso da lógica de resultados,  competição administrativa e controle social, que se relacionam com uma nova gestão pública, diferentemente daquela weberiana, voltada aos processos. A política de resultados considera essencial a utilização de sistemas de avaliação das políticas públicas para mensuração de desempenho e para se exigir a prestação de contas dos atores responsáveis que atuam dentro do ciclo de políticas, desde a preparação da agenda política até a avaliação propriamente dita.
Do controle social depreende-se que o controle dos cidadãos sobre os governantes deve ser constante, desde as eleições até o desenvolvimento do mandato político, bem como tanto nas esferas de decisão da administração pública, como nas esferas de produção de bens e serviços públicos e privados.
Por fim, vale comentar sobre uma nova ideia de accountability, a accountability societal  definida na literatura como um mecanismo de controle não eleitoral, que emprega ferramentas institucionais e não institucionais como participação em instâncias de monitoramento, denúncias na imprensa, entre outras, baseadas na ação de cidadãos através de associações, movimentos, mídia etc, e que têm como objetivo expor as falhas e disfunções do governo, e assim, agendar novas pautas para agenda pública ou influenciar as decisões a serem implementadas pelo Estado, ou seja, ao que parece, trata-se de atores considerados como privados apenas, aqueles que somente possuem a capacidade de influenciar e não de decidir.
Esta ideia parte do pressuposto da dicotomia entre Estado e sociedade civil e a partir disto, existe uma especificidade que é o controle da sociedade sobre a ação do Estado, que mereceria de estudo à parte das dimensões vertical e horizontal. Interessante que, estas últimas dimensões não fazem sentido se não considerarem a dimensão societal.
Concluindo, fica evidente que o conceito de accountability é abrangente e assunto inesgotável, que envolve responsabilidade objetiva e subjetiva, controle, transparência, obrigação de prestação de contas, justificativas para ações desencadeadas ou não, premiação ou castigo.
No Brasil fica claro que mesmo com os avanços alcançados, muito a partir da Constituição Federal de 1988, ainda o país padece de maior absorção e aplicação do conceito de  accountability.